MANIFESTO
DA POESIA PAU - BRASIL
A poesia existe nos fatos.
Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino,
são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o
acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de
Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério.
A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história
bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o
lado autores conhecidos.
Comovente. Rui Barbosa:
uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e
das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade
do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel.
Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores
anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de
poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da
saudade universitária.
Mas houve um estouro nos
aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas.
Rebentaram.
A Poesia para os poetas.
Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de
tudo, a invasão de tudo: o teatro de base e a luta no palco entre morais e
imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei,
gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do
saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a
poesia.
A poesia Pau-Brasil, ágil
e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise
Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela
do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção
oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a
prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como
chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos,
sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.
Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de
vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta - a luta
pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de
exportação.
Houve um fenômeno de
democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o
naturalismo.
Copiar. Quadro de
carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário
oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...Veio a
pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas.
Apareceu a máquina
fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da
misteriosa genialidade de olho virado - o artista fotográfico.
Na música, o piano invadiu
as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas.
Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava
compôs para a pleyela. Straviski.
A estatuária andou atrás.
As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma
máquina de fazer versos - a havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou
apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando.
Duas fases: 1a) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos
voluntário. De Cézanne e Malarrmé, Rodin e Debussy até agora. 2a) o lirismo, a
apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O
Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento
de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa,
as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese.
O equilíbrio.
O acabamento de
carrosserie.
A invenção.
A surpresa.
Uma nova perspectiva.
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural
nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.
O trabalho contra o
detalhe naturalista - pela síntese; contra a morbidez romântica - pelo
equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e
pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A nova, a de Paolo Ucello
criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão de ótica. Os objetos distantes
não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à
aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por
uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala: A outra,
a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos
colos. O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da
indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails.
Laboratórios e oficinas
técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas
com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto
invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O
romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura
eloqüente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a
volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e
cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma
sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a
Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a
contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente
- a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a
química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme
nenê que o bicho vem pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos
cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas
questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores,
cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia
íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés
e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
O trabalho da geração
futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o
problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
O estado de inocência
substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da
originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
A reação contra todas as
indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração
moderna.
Apenas brasileiros de
nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística.
Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem
reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica.
Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos,
pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O
Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
Oswald de Andrade
(Correio da Manhã, 18 de
março de 1924.)
MANIFESTO
ANTROPÓFAGO
Só a ANTROPOFAGIA nos une.
Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo.
Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as
catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não
é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos
os maridos católicos suspeitos postos em drama.
Freud acabou com o enigma
mulher e com os sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade
era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra
o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos
viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade,
pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos
gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano,suburbano,
fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência
participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os
importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a
mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução
Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre
declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada
pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o
Brasil Caraíba. Ori
Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau.
Da Revolução Francesa ao
Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro
tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Mas nunca admitimos o
nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira.
Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto
dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se
o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a
conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica.
Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições
exteriores.
Só podemos atender ao
mundo orecular.
Tínhamos a justiça
codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A
transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível
e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo
vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E
o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das
hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu.
Subsistência.
Conhecimento.
Antropofagia.
Contra as elites vegetais.
Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados.
Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de
Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos
portugueses.
Já tínhamos o comunismo.
Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju
A magia e a vida. Tínhamos
a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens
dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas
formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que
era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade.
Esse homem chama-se Galli
Mathias. Comi-o.
Só não há determinismo
onde há o mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do
homem que começam no Cabo Finisterra9. O mundo não datado. Não rubricado.
Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por
meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores
de sangue.
Contra as sublimações
antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos
missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu:
- É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que
vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes
e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do
universo Incriado, guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação.
Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E
um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos
estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o
tédio especulativo.
De William James e
Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a
criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala (sic.) de
imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um
profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava.
Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage
como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses
descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de
tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de
D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos
nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do
costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As
idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias
e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos
instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos
Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos
nove.
A luta entre o que se
chamaria Incriado e a Criatura - ilustrada pela contradição permanente do homem
e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia.
Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A
terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a
antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos
os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma
sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto
antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o
amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao
aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo - a
inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e
cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando
as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, - o patriarca João Ramalho fundador
de São Paulo.
A nossa independência
ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa
coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia.
É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da
Fonte.
Contra a realidade social,
vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem
loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
Oswald de Andrade
Em Piratininga24
Ano 374 da Deglutição do
Bispo Sardinha25
(Revista de Antropofagia,
Ano I, No. I, maio de 1928.)
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