Uma das mais ricas
fontes de ensinamentos ocultos da tradição cristã é a vida dos místicos. Essa
fonte e a dos grupos esotéricos constituem prova viva e sempre renovada da tese
da revelação permanente. A Igreja Católica Romana prega que a Bíblia foi escrita
sob a inspiração do Espírito Santo (por isso seria isenta de erros). Mas a
Igreja sempre foi enfática em limitar a extensão dessa inspiração, negando-a
para todos os outros documentos que não estivessem incluídos na lista daqueles
considerados canônicos. Se, teoricamente, a Igreja considera que a inspiração
teria ocorrido quando os evangelistas supostamente escreveram a Bíblia, na
prática ela deixa implícito que deveria haver algum tipo de inspiração, senão
permanente pelo menos esporádica, para explicar como os textos bíblicos foram modificados
oficialmente tantas vezes ao longo dos séculos, em concílios, sem perder a
veracidade inicial.
Interpretações teológicas à parte, o fato é que a inspiração divina sempre existiu e continuará a ocorrer cada vez mais no futuro, à medida que maiores contingentes de discípulos ingressem no Caminho da Perfeição. Os místicos são, por definição, indivíduos que alcançaram certo grau de abertura espiritual caracterizada por níveis crescentes de contato interior. [1] Essas visões e contatos interiores com o Eu Superior nada mais são do que aquilo que os Padres da Igreja Primitiva chamavam de inspiração do Espírito Santo? Esse tipo de contato, que possibilita a apreensão direta da verdade, é responsável pela firmeza inquebrantável da fé típica dos místicos. [2] Vivendo num mundo interior de visão espiritual, o místico passa por um processo de transformação acelerada. As experiências interiores reforçam sua determinação de prosseguir com a transformação exterior, necessária para o aprofundamento de sua vida interior até alcançar o objetivo de todos os místicos, a vida unitiva, o Supremo Bem da consciência de união com Deus.
Uma consequência natural dos contatos interiores do místico é que ele passa a confiar cada vez menos nas autoridades constituídas, mesmo em se tratando da hierarquia eclesiástica. Para evitar conflito com seus superiores religiosos, alguns místicos procuram experiências de caráter muito reservado. [3] Outros orientam sua consciência de forma a que sua experiência interior seja pautada por seus conceitos religiosos, como Mechthilde de Magdeburg.[4] O místico, assim, torna-se, de certa forma, extremamente individualista, ainda que humilde. Um estudioso da vida dos místicos, que pode falar com conhecimento de causa em virtude de suas próprias experiências interiores, diz:
Devemos distinguir o místico do homem piedoso. Ambos podem ser religiosos e, igualmente, devotados a um credo ou ritual; mas o último se baseia na autoridade da igreja ou do ritual de uma forma que o temperamento do místico não aceita. O místico é sempre um espinho na carne de uma igreja estabelecida, porque será guiado pela autoridade até onde lhe convier. [5]
As igrejas cristãs, católicas e protestantes, sempre tiveram relações tensas com seus místicos. O católico que admira profundamente a vida de santidade de místicos como Francisco de Assis, Teresa de Ávila e João da Cruz, conhecendo os encômios prestados pela Igreja a estes Santos, geralmente não imagina que possam ter sido perseguidos pela mesma Igreja que agora lhes presta louvor. Francisco de Assis teve que se explicar ao Vaticano em virtude do rigoroso voto de pobreza que estabeleceu para sua ordem, pois com isso causou considerável constrangimento à hierarquia clerical da época, vivendo em grande fausto e opulência, em meio à pobreza do povo.
Teresa de Ávila foi examinada pela Inquisição, aquela terrível instituição que tanto sofrimento trouxe à humanidade em nome do Deus de compaixão. Felizmente, a ajuda divina transformou aquela tentativa de cerceamento da Inquisição numa grande dádiva para o mundo, pois Teresa foi instruída por seu confessor, a mando da Inquisição, a escrever suas experiências espirituais, que tanta suspeita causava a seus superiores. Apesar das condições inusitadas em que foi forçada a escrever (devia entregar seus escritos cada dia a seu confessor e, ao recomeçar no dia seguinte, ou quando viável, não tinha permissão para consultar o que tinha escrito anteriormente),[6] a inspiração divina, que guia todos os que realmente vivem para Deus, permitiu que suas obras literárias servissem de fundamento e orientação para místicos e buscadores espirituais desde então. João da Cruz, por sua vez, foi perseguido e jogado na prisão por seus superiores eclesiásticos onde, na solidão, passou por experiências místicas que lhe deram inspiração para suas obras mais profundas e reveladoras.
Apesar de todos esses percalços, o cristianismo institucional sempre reconheceu e aceitou a realidade da experiência mística, contanto que fosse circunscrita aos ditames da ortodoxia. Como a guardiã autonomeada da salvação humana, a teologia reservou para si o poder de decisão final em todos os assuntos religiosos. Ela condenava incondicionalmente aqueles cuja busca por esclarecimento interior os afastava das restrições impostas pela ortodoxia. Essas restrições aos instintos naturais do coração e da mente dividiam a congregação e resultaram em cisões. O místico não podia aceitar o conceito de que uma instituição mortal pudesse ser legitimamente capacitada a ditar as regras da salvação humana. A associação íntima entre Deus e o homem está além da alçada do clero. [7]
O caminho místico, como descrito pela tradição monástica ocidental, desde os primeiros séculos com os anacoretas e cenobitas, passando pela Idade Média e Renascença, inclui uma imensa variedade de experiências. Evelyn Underhill, em seu monumental tratado sobre misticismo, alerta que:
Não se descobriu nenhum místico em quem todas as características observadas de consciência transcendental estivessem resumidas e que, por isto, possa ser tratado como caso típico. Em alguns casos, estados mentais que são distintos e mutuamente exclusivos ocorrem simultaneamente. Em outros, estágios que foram considerados como essenciais são inteiramente omitidos, em outros, ainda, sua ordem parece ser invertida. Parece inicialmente que nos confrontamos com um grupo de seres que chegam ao mesmo fim sem obedecer a nenhuma lei geral?[8]
Em que pese essa enormidade de experiências distintas, alguns estudiosos dividem a vida dos místicos em três etapas:
· Via negativa, ou purgativa. Primeira etapa, em que o postulante deve proceder a uma mudança radical de vida, com o assíduo combate aos vícios, paixões e apegos. Constitui um processo de despojamento das coisas do mundo, também conhecido por kenosis (palavra grega que significa esvaziamento), para abrir espaço em seu coração para preenchimento com as coisas espirituais.
· Via positiva, ou iluminativa. A etapa intermediária de cunho mais positivo, em que o místico procura cultivar as virtudes que, promovendo a sintonia com a perfeição divina, levam às expansões de consciência conhecidas como iluminação.
·Via unitiva, ou perfeita. O coroamento de todo o esforço do místico, marcado pela contemplação que leva o praticante à suprema manifestação terrestre da realidade divina. Nessa etapa, o místico passa por experiências que interpreta como ver a Deus, chegando, mais tarde, a unir-se a Ele. Pode-se perceber na via unitiva três níveis de realização espiritual: a união rara, a intermitente e a estável ou plena. [9]
Essa classificação em etapas será útil para a compreensão da metodologia de transformação apresentada na última parte deste livro. Teresa de Ávila, no entanto, sugere que a experiência mística passa por sete estágios. [10] Sua classificação é extremamente útil para o entendimento dos tipos de oração ou meditação. Esses sete estágios, ou moradas, como ela prefere chamar, têm um paralelo com o processo de individuação, como apresentado por Jung. Os três primeiros representam a primeira fase do processo de individuação, caracterizado pela expansão da personalidade e sua adaptação ao mundo exterior. As três últimas moradas representam a segunda fase do processo de individuação, caracterizado pelo retraimento necessário para a adaptação à vida interior. O quarto estágio é uma etapa de transição em que o indivíduo começa a redirecionar a ênfase de sua vida do exterior para o interior. [11]
O misticismo, portanto, não é um credo, mas uma qualidade de percepção espiritual. Por isso, a experiência dos místicos é de suma importância para o estudo do lado interno da tradição cristã, pois eles demonstram em sua vida que o instrumental que nos foi legado por Jesus para que se possa alcançar a meta final de união com Deus ainda está disponível e vem sendo usado com sucesso por inúmeros peregrinos ao longo dos séculos.
NOTAS:
[1] O contato
interior ocorre quando a consciência usual do indivíduo é influenciada por sua
parte divina, seu Eu Superior. Esse contato ocorre em diferentes níveis,
podendo ir desde um impulso inconsciente para pensar sobre algum conceito ou
ideia, até a instrução consciente por vozes nem sempre identificada, como é o
caso dos místicos.
[2] Otto, Rudolf, Mysticism East and West. A Comparative Analysis of the Nature of Mysticism (The Macmillan Co., 1932), pg. 29-37.
[3] Dan Merkur, Gnosis. An Esoteric Tradition of Mystical Visions and Unions (State University of New York Press, 1993), pg. 11.
[4] Mechthild of Magdeburg, The Revelations of Mechthild of Magdeburg (1219-1297) (Londres: Longmans, Green, 1953), pg. 9.
[5] C. Jinarajadasa, The Nature of Mysticism (Adyar, India: Theosophical Publishing House, 1934), pg. 4
[6] Teresa de Ávila, Castelo Interior ou Moradas (S.P.: Paulus, 1981), pg. 11, 80.
Fonte: OS ENSINAMENTOS
DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ de Raul Branco
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