‘O tempo não existe’: a visão de Carlo
Rovelli, físico tido como ‘novo Stephen Hawking’
O renomado físico teórico Carlo Rovelli,
um dos fundadores da chamada gravidade quântica em loop, defende que devemos
pensar em um mundo em que o tempo não é mais uma variável contínua.
"O tempo não existe. E eu tenho 15
minutos para convencê-los disso", diz Carlo Rovelli, após olhar seu
relógio de pulso.
Assim começa uma palestra TEDx feita em
2012 pelo físico italiano, que não costuma aparecer na imprensa internacional.
Uma das vezes em que ele ganhou destaque
foi na revista britânica New Statesman, numa reportagem assinada por George
Eaton intitulada "O físico rockstar Carlo Rovelli explica por que o tempo
é uma ilusão", em tradução livre.
"A determinação de Rovelli em
tornar a física quântica acessível e suas prodigiosas vendas de livros o
levaram a ser chamado de 'o novo Stephen Hawking'", destaca o artigo.
Em 2020, no evento "The Nature of
Time" (A Natureza do Tempo), organizado pela revista New Scientist, o
físico teórico pegou uma corda e a esticou de uma ponta a outra do palco. E
pendurou uma caneta no meio da corda para marcar o presente.
Rovelli disse: "É aqui que
estamos."
Ele então ergueu o braço direito e
apontou para a direita: "Esse é o futuro." Na sequência, apontou para
a esquerda: "E esse é o passado."
"Esse é o tempo do nosso dia a dia:
uma longa fila, uma sequência de momentos que podemos ordenar, que tem uma
direção preferida, que podemos medir com relógios", disse. "E todos
nós concordamos com os intervalos de tempo entre dois momentos diferentes ao
longo do caminho, ao longo desta linha."
Depois acrescentou: "Quase tudo o
que eu disse está errado. Em termos factuais, isso está incorreto. É como se eu
dissesse que a Terra é plana".
"O tempo não funciona assim, ele o
faz de uma maneira diferente", emendou.
E esclareceu: "Essas não são ideias
especulativas que aparecem em sonhos estranhos de físicos. São fatos que
medimos em laboratório, com instrumentos, e que podem ser verificados".
'Pura rebelião'
Nascido em Verona, na Itália, em 1956,
Rovelli confessa que sua adolescência foi "pura rebelião". O mundo em
que ele vivia era diferente do que considerava "justo e belo" e, em
meio a essa decepção, a ciência veio ao seu encontro.
No mundo acadêmico, o jovem pesquisador
descobriu "um espaço de liberdade ilimitada", que ele relembra em um
de seus livros.
"No momento em que meu sonho de
construir um novo mundo colidiu com a realidade, me apaixonei pela ciência, que
contém um número infinito de novos mundos", descreve.
"Enquanto eu escrevia um livro com
meus amigos sobre a revolução estudantil (um livro que a polícia não gostou e
me custou uma surra na delegacia de Verona: 'Diga-nos os nomes de seus amigos
comunistas!'), mergulhei cada vez mais no estudo do espaço e do tempo, tentando
entender os cenários que haviam sido propostos até então."
Gravidade quântica
Rovelli decidiu dedicar sua vida ao
desafio de conciliar duas teorias: a mecânica quântica (que descreve o mundo
microscópico) e a relatividade geral de Albert Einstein.
"Para chegar a uma nova teoria,
devemos construir um esquema mental que não tenha a ver com nossa concepção
usual de espaço e tempo", diz. "Você tem que pensar em um mundo em
que o tempo não é mais uma variável contínua, mas uma outra coisa."
Ao buscar possíveis soluções para o
problema da gravidade quântica, Rovelli foi um dos fundadores da teoria da
gravidade quântica em loop, também conhecida como teoria do loop, que apresenta
uma estrutura fina e granular do espaço.
Essa teoria tem aplicações em diferentes
campos – por exemplo, o estudo do Big Bang ou as formas de abordar e entender
os buracos negros.
Buraco negro recém-descoberto pode ter
se formado antes das estrelas e das galáxias
O físico italiano tem uma carreira
brilhante, que inclui inúmeros prêmios e livros. Uma dessas publicações,
"Sete Breves Lições de Física" (Editora Objetiva), foi traduzida para
41 idiomas e vendeu mais de 1 milhão de cópias.
Ele também foi professor na Itália, nos
Estados Unidos, no Reino Unido e atualmente é pesquisador do Centro de Física
Teórica de Marselha, na França.
Rovelli respondeu por escrito a algumas
perguntas da BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. Confira a seguir os
principais trechos da entrevista.
BBC Mundo - O que é o tempo? Ele
realmente existe?
Carlo Rovelli - Sim, claro que o tempo existe.
Do contrário, o que é que sempre nos falta? Mas a ideia comum que temos sobre o
que é o tempo e como ele funciona não serve para entendermos átomos e galáxias.
Nossa concepção usual de tempo funciona apenas em nossa escala e quando vamos
medir as coisas com muita precisão.
Se quisermos aprender mais sobre o
universo, temos que mudar a nossa visão do tempo. Porque o que costumamos
chamar de "tempo", sem pensar muito sobre o que isso significa, é
realmente um emaranhado de fenômenos diferentes. O tempo pode parecer simples,
mas é realmente complexo: ele é feito de muitas camadas, algumas das quais são
relevantes apenas para certos fenômenos, e não para outros.
BBC Mundo - O que o senhor descobriu
quando se perguntou: por que só podemos conhecer o passado e não o futuro?
Rovelli - A razão de termos informações
sobre o passado e não sobre o futuro é estatística. Tem a ver com o fato de não
vermos os detalhes das coisas. Não vemos, por exemplo, as moléculas individuais
que compõem o ar da sala em que estamos. Mas, no mundo microscópico, não há
essa distinção entre o passado e o futuro.
BBC Mundo - O senhor falou sobre a elasticidade do tempo e sobre um dia em que "vivenciamos coisas diretamente, como encontrar nossos filhos mais velhos que nós mesmos no caminho de volta para casa". Como isso pode acontecer?
Rovelli - A pergunta correta é a oposta:
por que quando nos separamos e nos encontramos novamente, o seu e o meu relógio
medem o mesmo intervalo de tempo?
Não há razão para que devam medir esse
mesmo tempo. A experiência nos diz isso apenas porque nossas medições não são
precisas o suficiente. Se fossem, veríamos que o tempo corre em velocidades
diferentes para pessoas diferentes, dependendo de onde estão e como se movem.
Portanto, eu poderia me separar de meus filhos e reencontrá-los em um tempo que
significa apenas um ano para mim, mas 50 anos para eles. Nesse cenário, eu
ainda sou jovem e eles envelheceram. Isso certamente é possível. O motivo pelo
qual normalmente não vivenciamos esse tipo de experiência é apenas que nossa vida
na Terra se move numa velocidade lenta entre nós e, nesse caso, as diferenças
de tempo são pequenas.
BBC Mundo - Algum dia poderemos viajar
ao passado?
Rovelli - Considero extremamente
improvável. Viajar para o futuro, por outro lado, é o que fazemos todos os
dias.
BBC Mundo - O que o senhor quer dizer
com isso?
Rovelli - Viajar ao passado é difícil.
Mas viajar para o futuro é muito fácil. Faça o que fizer, você está viajando
sempre para o futuro: o amanhã é o futuro do hoje.
BBC Mundo - Sabemos que o senhor gosta
muito de gatos e prefere não se referir ao gato de Schrödinger e a discussão se
ele está vivo ou morto (ou dormindo). O senhor poderia explicar por que,
segundo esse famoso experimento, o animal pode estar vivo e morto ao mesmo
tempo?
Rovelli - Acho que o gato não está
realmente acordado e dormindo ao mesmo tempo. Considero que, com respeito a si
mesmo, o gato está definitivamente acordado ou dormindo. Mas quando se trata de
mim e de você, pode não haver nem um estado, nem outro. Porque eu acho que as
propriedades das coisas (incluindo os átomos e os gatos) são relativas a outras
coisas e só se tornam reais nas interações com elas. Se não houver interações,
não há propriedades.
BBC Mundo - Como o senhor explicou, a
discussão entre os físicos da mecânica quântica não é apenas sobre o gato estar
vivo e morto ao mesmo tempo, mas também sobre o experimento com dois eventos, A
e B, nos quais A vem antes de B, mas também B vem antes de A. Como isso pode
ser possível?
Rovelli - Quando dizemos que um evento A
é anterior a um evento B, o que queremos dizer é que pode haver um sinal indo
de A para B. Por exemplo, sua pergunta é anterior à minha resposta, porque me
chega antes que eu possa respondê-la.
No entanto, às vezes pode acontecer que
seja realmente impossível enviar um sinal de A para B, mas também impossível
enviar um sinal de B para A. Então, nenhum é anterior ao outro.
A razão de não estarmos acostumados com
isso é porque a luz viaja muito rápido, então tendemos a pensar que podemos ver
tudo "instantaneamente". Mas a verdade é que não podemos. Portanto,
sempre existem eventos que não são ordenados de acordo com esse tempo.
BBC Mundo - O que o senhor quer dizer
quando afirma que existem muitas versões diferentes da realidade, embora todas
pareçam iguais em grande escala?
Rovelli - As propriedades de todas as
coisas são relativas a outras coisas. As propriedades do mundo em relação a
você não são necessariamente as mesmas em relação a mim. Normalmente, não vemos
essas diferenças nas propriedades físicas porque os efeitos quânticos são muito
pequenos. Mas, em princípio, podemos ver mundos ligeiramente diferentes.
BBC Mundo - O senhor disse que temos que reorganizar a forma como pensamos a realidade. Como podemos fazer isso? O que estamos perdendo se não tentarmos seguir por esse caminho?
Rovelli - Podemos continuar vivendo
nossas vidas ignorando a física quântica, mas se estamos curiosos sobre como a
realidade funciona, temos que encarar que as coisas são realmente estranhas.
BBC Mundo - A metáfora que o senhor faz
sobre a mecânica quântica e sua interseção com a filosofia, como se essas duas
áreas do conhecimento fossem um casal se reunindo, se separando, depois
voltando e se separando novamente, é fascinante. A mecânica quântica e a
filosofia precisam uma da outra?
Rovelli - Creio que sim. No passado, a
física fundamental também avançou graças à inspiração da filosofia.
Todos os grandes cientistas do passado
eram leitores ávidos de filosofia. Não há razão para que as coisas sejam
diferentes hoje.
Na minha opinião, o inverso também é
verdadeiro: os filósofos que ignoram o que aprendemos sobre o mundo com a
ciência acabam sendo superficiais.
BBC Mundo - Para o senhor, o livro
"A Ordem do Tempo" é muito especial porque "finge ser sobre
física, mas secretamente é o meu livro sobre o significado e a finitude da
vida". Qual é o sentido da vida para Carlo Rovelli?
Rovelli - O sentido da vida para Carlo
Rovelli é o que penso ser o sentido da vida para todos nós: a rica combinação
de necessidades, desejos, aspirações, ambições, ideais, paixões, amor e
entusiasmo, que surgem em várias medidas e em diferentes versões naturalmente
de dentro de nós. A vida é uma explosão de significado.
Alguns projetaram o significado da vida
fora de si mesmos, enquanto alguns ficaram desapontados ao perceber que havia
algo ilusório em esperar que o significado viesse de fora.
Uma das minhas respostas favoritas a
essa pergunta foi atribuída a um antigo sioux [etnia indígena norte-americana]:
o propósito da vida é abordar com uma canção qualquer coisa que encontrarmos
pela frente.
BBC Mundo - O senhor assinalou que na
ciência muitos erros são cometidos quando fingimos estarmos certos, quando na
verdade muitas vezes não temos essa certeza toda. O novo coronavírus trouxe
muitas incertezas para nossas vidas. Como o senhor lidou com isso?
Rovelli - Eu tenho me esforçado não
apenas para minimizar o risco para mim e para as pessoas que amo, mas também
para minimizar meu próprio papel na disseminação da infecção.
Mas sabendo bem que o risco foi e
continua a ser real e que milhões de pessoas morreram e ainda estão morrendo,
tenho em mente que isso ainda pode acontecer comigo e meus entes queridos.
Essa constatação não deve ser motivo
para pânico, mas também não gosto de esconder a cabeça na areia.
BBC Mundo - Que reflexões o senhor fez
nestes tempos desafiadores para milhões de pessoas ao redor do mundo?
Rovelli - O que fico pensando é simples: não seria o momento de a humanidade trabalhar em conjunto, em vez de continuarmos a ficar uns contra os outros? O Ocidente está construindo novos inimigos: China, Irã, Rússia...
Não podemos viver de forma respeitosa e
colaborativa, sem a necessidade de subjugar uns aos outros, de prevalecer sobre
os outros, de vencer, em vez de cooperar para o bem comum?
A humanidade está enfrentando uma
pandemia, milhões de mortes, desastres ambientais e ainda não conseguimos
aprender a nos vermos como membros de uma única família, que é o que realmente
somos.
A mecânica quântica é a descoberta de
que a realidade é tecida por relacionamentos, mas permanecemos cegos para o
fato de que prosperamos em relação aos outros, não uns contra os outros. Posso
ser ingênuo, mas é isso o que penso todos os dias quando vejo o noticiário.
BBC Mundo - O senhor disse que gostou de
ler "O Amor em Tempos do Cólera", de Gabriel García Márquez, porque
"nestes tempos sombrios, é bom ler sobre o amor verdadeiro". Você
pode nos contar mais sobre o que gostou no livro?
Rovelli - É um livro cheio de graça e
luz. Retrata as muitas formas de amar e partilhar, com um olhar que sorri
diante de toda essa complexidade.
Uma forma de amor é a lealdade da
personagem Fermina Daza ao marido. Outra é a intimidade e a amizade de
Florentino Ariza com dezenas e dezenas de mulheres. Mas esse amor absoluto
entre ele [Ariza] e ela [Daza] é uma bela forma de amor, que foi venerado e
valorizado por décadas, até que conseguiu florescer de forma maravilhosa quando
os dois já estavam mais velhos.
Fonte: Por Margarita
Rodríguez, BBC/ Portal G1.globo.com.
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