Panacéia dos Amigos

quarta-feira

A revolução dos bichos – George Orwell


 

 

“Lembro-vos também de que na luta contra o Homem não devemos ser como ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios. Animal nenhum deve morar em casas, nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nem comerciar. Todos os hábitos do Homem são maus. E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos irmãos. Todos os animais são iguais.”
A revolução dos bichos - George Orwell


“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”
Friedrich Nietzsche

"O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente."
(John Emerich Edward Dalberg-Acton)

    “A revolução dos bichos” é uma fábula, na verdade muito mais uma metáfora sobre a relação corruptora do poder.

    Especificamente, Orwell está falando sobre a queda e corrupção da revolução socialista idealizada por Marx e Engels, realizada por Lênin e adulterada por Stalin. Mas, não se trata de uma história de dimensão restrita, já que a o desmoronamento de um ideal não é propriedade exclusiva do socialismo, mas quase uma regra geral de todos os sistemas sociais que pregam uma descentralização do poder.

    Notoriamente, muitas filosofias religiosas foram adulteradas para conter ou mesmo destruir sua visão expansiva e solidária em relação ao gênero humano e toda a vida e entregar o poder nas mãos de poucos homens para que estes dominassem o sistema ao seu bel prazer. O sistema capitalista em sua gênese já se formou elitista e o sistema socialista se corrompeu também em poucos anos.

    Antes deles, tiranias, monarquias, religiões e impérios também se formavam através de corruptas elites.

    No entanto, em seus anos iniciais quase todos os sistemas são aureados com uma centelha de esperança sincera dos sonhadores. E o sistema socialista não foi diferente. Nos anos iniciais, muitos seguiram com fervor quase religioso o sonho de um sistema sem elites, sem governo, dominado pelos trabalhadores. Demorou até perceberem o surgimento de uma elite que os dominava e oprimia tanto quanto qualquer sistema anterior.

    Orwell faz parte deste grupo de sonhadores que acordaram de um sonho e adentraram numa realidade aterrorizante. E o livro através desta fábula tenta demonstrar o passo a passo desta queda.

 

    Tudo começa quando o dono da Granja do Solar, Sr. Jones, embriagado com o poder, tranca o galinheiro e vai para a cama cambaleando. Major, porco ancião e premiado, reúne todos os animais e conta seu sonho visionário de como será o mundo depois que o homem desaparecer. Declara em tom profético a necessidade dos bichos assumirem suas vidas, acabando com a tirania dos homens. Os animais são contagiados pelos versos revolucionários e entoam apaixonadamente a canção "Bichos da Inglaterra". Sr. Jones acorda alarmado com a possível presença de uma raposa e, com uma carga de chumbo disparada na escuridão, encerra a cantoria.

    Major falece três noites após. A morte emoldura o mito e suas palavras ganham destaque nas falas dos animais mais inteligentes da granja. Os bichos mais conservadores insistem no dever de lealdade ou no medo do incerto: “Seu Jones nos alimenta. Se ele for embora, morreríamos de fome”. Os perfis dos animais são traçados: os porcos, as ovelhas, os cavalos, as vacas, as galinhas, o burro... Todos com traços marcantes de manipulação, alienação, rigidez, ignorância, dispersão, teimosia...A rebelião ocorre mais cedo do que esperavam. Com a expulsão do Sr. Jones da granja, surge o momento de reorganizar o funcionamento da propriedade. Os porcos assumem a liderança, dirigem e supervisionam o trabalho dos outros. Os demais dão continuidade à colheita. Alguns bichos se destacam pela obstinação, como o cavalo Sansão, cujo lema é “Trabalharei mais ainda.”

Os sete mandamentos declarados por Major são escritos na parede:

“Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
O que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
Nenhum animal usará roupa.
Nenhum animal dormirá em cama.
Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal.
Todos os animais são iguais.”

    Bola-de-neve e Napoleão se destacam na elaboração das resoluções. Sempre com posições contrárias. Os demais animais aprenderam a votar, mas não conseguem formular propostas. A pluralidade de pensamentos dá margem aos debates e às escolhas.

    Os sete mandamentos elaborados na revolução são condensados no lema “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”. A síntese do “animalismo” é repetida pelas ovelhas no pasto por horas a fio. Sr. Jones tenta recuperar a propriedade, mas é vencido pelos bichos na “Batalha do Estábulo”. O porco Bola-de-neve e o cavalo Sansão são condecorados pela bravura demonstrada no conflito. Mimosa foge para uma propriedade vizinha seduzida pelos mimos oferecidos por um humano. Surge a idéia de construção de um moinho de vento... Os animais ficam divididos com a perspectiva do novo.


    Bola-de-neve e Napoleão sobem ao palanque e montam suas campanhas políticas. A eloqüência de Bola-de-neve conquista os animais, mas a força dos cães de Napoleão expulsa Bola-de-neve da granja e “legitima” Napoleão no cargo de líder diante dos atemorizados bichos. Os bichos trabalham como escravos na construção do moinho de vento e gradativamente vão perdendo a memória de como era a vida na época do Sr. Jones. Animais trabalhadores, como Sansão, acordam mais cedo, trabalham nas horas de folga e assumem as máximas elaboradas pelos donos do poder: “trabalharei mais ainda” e “Napoleão tem sempre razão”.

    Como a maioria dos animais não aprendeu a ler, os mandamentos vão sendo alterados na medida em que Napoleão e seus assessores vãos assumindo posições contrárias aos princípios que nortearam a revolução: os porcos começam a comerciar a produção da granja, passam a residir na casa do Sr. Jones, dormem em camas, usam roupas, bebem uísque, relacionam-se com homens... A maioria dos animais é facilmente convencida dos seus “equívocos de interpretação”. Os poucos que conseguem ler e interpretar as adulterações do poder se omitem...Alguns animais são executados sob a alegação de alta traição. Tudo o que ocorre de errado na granja é de “responsabilidade” de Bola-de-neve. Sua história é enterrada na lama de mentiras e manipulação imposta pelo novo regime. As reuniões de domingo são proibidas e a canção “Bichos da Inglaterra” é censurada. Os bichos trabalham mais e não são reconhecidos por seus esforços. Todas as condecorações são dadas ao líder.


    Os animais passam privações. Suas rações são diminuídas em prol do bem comum. Os porcos são agraciados com os privilégios do poder. Uma segunda batalha com os humanos surpreende os animais enfraquecidos, mas, apesar das muitas perdas, eles vencem e permanecem sob a ditadura imposta por Napoleão. Infelizmente perderam os parâmetros para avaliação, perderam a memória da história antes do governo de Napoleão.Só restava um único mandamento e mesmo assim adulterado: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros”. Depois disto nada mais se estranhava. 


    O autor George Orwell, escritor, jornalista e militante político, participou da Guerra Civil Espanhola na milícia marxista/trotskista e foi perseguido junto aos anarquistas e outros comunistas pelos stalinistas. Desencantado com o governo de Stalin, escreveu “A Revolução dos Bichos” em 1944. Nenhum editor aceitou publicar a sátira política, pois, na época, Stalin era aliado da Inglaterra e dos Estados Unidos. Só após o término da guerra, em 1945, é que o livro foi publicado e se tornou um sucesso editorial.

    Este livro fabuloso deve ser lido, através dele é possível compreender profundamente os perigos do poder e como tantos sistemas ruíram mesmo tendo sido forjados nos mais poderosos sonhos de igualdade.

E lembrem-se: “Quem lê um livro comunga com a alma deste, e desta comunhão renova a sua própria.”

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